domingo, outubro 01, 2006

Frango à Cafreal

Lembrar-me de um tema gastronómico precisamente na véspera de um dia de jejum, talvez seja pecado. Tenho que verificar isso, mas já agora depois de publicar o blog.

Dia de jejum para muita gente, pois para os judeus amanhã é o dia de Kipur, durante o qual não se come nem se bebe, desde o pôr-do-sol de hoje até ao nascer das estrelas de amanhã; e para os muçulmanos é o mês do Ramadão, durante o qual só podem comer à noite.

Em Israel é um dia muito carregado de emoções.
Porque é um Dia de Expiação dos pecados, dia de Perdão, dia em que, segundo a tradição, são firmadas as sentenças sobre o que vai ser a vida de cada um, no ano que começou há dez dias. Os mais religiosos passam o dia de jejum inteiro na sinagoga em orações e penitências. Os menos religiosos, na sua maioria, fazem duas visitas furtivas à sinagoga, hoje à noite, e amanhã, à hora da última oração, quando o sol se estiver a pôr sobre o Mediterrâneo. Provavelmente eles lá pensarão para consigo que, mesmo que a tradição não corresponda a nada de sério, "vá lá a gente saber" E não se perde nada em ir à sinagoga uma vez por ano...

Tenso também porque ainda não esqueceu o trauma do dia de Kipur de 1973, em que os israelitas foram surpreendidos pelo ataque simultâneo de todos os países fronteiriços. E os soldados foram chamados directamente das sinagogas para a frente de batalha. Morreram nessa guerra milhares de soldados, cujas famílias estão a visitar esta manhã as suas campas.

E a tudo isto há que somar o facto dos Serviços de Informação militares avisarem de que têm grande número de alertas sobre atentados terroristas planeados para hoje.

Qual a ligação etimológica com o frango à Cafreal? Já vamos ver.

Comecemos por lembrar que as línguas semíticas (hebraico, aramaico, árabe, fenício, ugarítico, etc.) são de flexão interna. Isto é, as raízes são constituídas apenas por consoantes, normalmente três, e os derivados modificam também as vogais no interior dessas raízes.

Uma dessas raízes, que nos pode servir de exemplo é CFR ou CPR, porque o F e o P são a mesma letra nas línguas semíticas.
Na sua forma mais simples o significado desta raiz era "cobrir, tapar" e por extensão "declarar que o que foi dito não é verdade".
É uma raiz que entra na composição de muitas palavras em todas essas línguas, e em que, por vezes, é difícil distinguir a origem semântica.
KIPUR - ou QUIPUR como se escrevia antigamente em português - é uma dessas palavras. O "C" está escondido, porque, em português, antes do "i" ler-se-ia "ss". Teve que ser substituído pelo "K" (imitação de outras línguas, porque não existe em português") ou pelo "Qu".

Kipur é, neste caso, um sinónimo de "expiação, perdão". Uma das formas de perdoar é "tapar" o pecado, "declarar que ele já não é verdade, já não existe".
"Cofêr" é a posição jurídica de um acusado, no tribunal, que nega ter cometido o crime de que é acusado.
"Cofêr" é também o indivíduo que nega a existência de Deus ou, em relação a uma determinada religião, nega os princípios da mesma.

Ora "cafr" era também o nome que os mouros da costa sudeste da África davam aos indígenas idólatras, que não aceitavam a religião muçulmana que eles seguiam.
Os portugueses, quando lá chegaram, adoptaram a mesma terminologia. Os pretos indígenas são mencionados na nossa literatura da época das descobertas e do povoamento da África austral pela forma aportuguesada "cafres". E a região por eles habitada por "Cafraria".

O mundo dá muitas voltas, e assim como hoje os fundamentalistas muçulmanos apodam de "cafres" todos os seres humanos que não seguem a sua religião (agora está mais na moda falar de "cruzados" e de "sionistas"), também em Portugal se chamou de "cafre" a quem não era cristão.

Num documento que Alexandre Herculano achou na Biblioteca da Ajuda e publicou nas suas obras, vêm referidos "os sete cafres contumazes", rabinos judeus que D. Manuel deixou encerrados nos Estaos, depois da conversão forçada de 1497, até que "se convertessem ao Cristianismo de sua própria vontade" para servir de exemplo aos forçados. Eles preferiram morrer "santificando o Nome de Deus".

E já que falámos de Moçambique é curioso lembrar que em Nampula existe agora uma nova universidade com o nome de Mussa Bin Bique.
Mussa era um rei mouro da ilha de Moçambique, que também aparece com a grafia Mussa N'bik. Foi da sua Ilha de Mussa N'bik, que passou o nome para toda a província colonial portuguesa, e para a actual República de Moçambique.

Voltando pois ao dia de Kipur, e à Cafraria, temos que tudo quanto diga respeito a esta se diga CAFREAL Como a receita do frango, que serviu de pretexto para o meu blogue de hoje.

Para quem não faz hoje jejum, aqui vai como bónus pela paciência de me ter lido até aqui, uma ligação para a receita do Frango à Cafreal

3 Comments:

Blogger jota6mais6 said...

Muito interessante o post, como já vai sendo costume neste blog

10:57 da tarde  
Blogger pedro oliveira said...

Parabéns, pelo «blog». Continue a partilhar, a partilhar-se. É bom ler as suas palavras com histórias, apetece perceber a História das palavras.

10:57 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Mais um texto interessantíssimo. Continuarei leitor assíduo.

J.M.

12:50 da manhã  

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