terça-feira, outubro 10, 2006

Vasco Santana - in memoriam

Aqui vai o prometido. O diálogo do saudoso actor Vasco Santana sobre reformas ortográficas.
Com alguma dificuldade e certas falhas, pois o som original já está muito gasto.

"Olha o doutor Coca-bichinhos! Como tem passado Vossa Excelência?
- Ora ainda bem.
- Olhe que ando muito atrapalhado com as línguas. V. Exa. conhece a linguística, tem relações com a fonética?
- Eu conheço uma data de raparigada, mas dessas nunca ouvi falar, não senhor.
- Quer dizer que V. Exa. é um ignorante como os outros.
- Não é para me gabar, mas já me têm chamado ignorante.
- V. Exa. não conhece os preceitos da reforma ortográfica, indispensáveis para evitar as discrepâncias da escrita, que estão a comprometer muito a língua.
- Ò senhor doutor, eu aí nunca tive discrepâncias. Tenho tido aftas, mas nunca tive discrepâncias.
- Ora vamos lá a saber uma coisa. Como é que o senhor se chama?
- Oh, senhor doutor, eu tenho um nome muito compriiiiido. Na intimidade chamam-me Zé...
- Ora diga-me lá: Zé tem acento ou não tem?
- Lá ter, tenho. Faço é muito pouco uso dele...
- Pois faz mal. V. Exa. tem por força que pôr o acento no Zé.
- Isso agora, mais devagar. Ponho se quiser!
- E diga-me lá uma coisa: V. Exa. é de opinião que se deixe ficar o acento antes do.......
- Sim, senhor. Pelo menos um quarto de hora.
- Perdão, não é nada disso.
- É sim, senhor doutor, alfavacas...
- Qual vaca, nem vaca nem meia vaca, nem carneiro... por exemplo, na palavra "Cúmulo", tem que ter um acento muito aberto, para se ouvir bem: cú-mu-lo.
- Ah, tem que se abrir o ...
- Exactamente. Em compensação, em "irmão colaço", colaço não precisa de acento.
- Pois não! "Cú lasso" já é aberto, por sua natureza!
- E nas miudezas, o que é que o senhor costuma pôr?
- Conforme, senhor doutor, ervilhas, cenouras, arroz...
- Oh, senhor! Dá-me a impressão de que estou falando a um cozinheiro.
- Ah, ah, ah! Cozinheiro não sou, não senhor doutor. Sou capaz de fazer um jantar. E sou capaz de o comerrrr!
- E o senhor sempre com a comida. E nas miudezas põe um trema, não é verdade? Assim como tem que o pôr na linguiça!
- Ò senhor doutor, mas então fico com a linguiça... tremada.
- É preciso muito cuidado com as letras que foram eliminadas. "Capa", por exemplo, já não há.
- Ah, pois não, agora anda toda a gente de gabardina.
- Com o valor das letras é necessário o máximo cuidado; o "xis" tem sempre o valor de "xe" e não de "ecse".
- E o "ch" já não se usa?
- Não, o "h" é inútil.
- Mas então, se o "ch" tem só o valor de "que", eu já não posso dizer é a minha morada. Sou logo multado.
- Ora essa! Onde mora o senhor?
- Moro na Travessa das ...
- Diga, diga!
- Bem... das Chagas, "ch" Chagas, 24-3.º Dto., uma casa às suas ordens.
- Muito obrigado!

Hanucá - Menorá

Quando criei este blog, fi-lo claramente na intenção de "despejar o meu saco", ou dossier, se quiserem, onde jaz a minha colecção de apontamentos sobre a vida das palavras, tema que, como já escrevi, me apaixona.
Não tinha, nem tenho, a intenção de que ele se torne num blog sobre judaísmo.
Sobre esse tema, entre outros, escrevo nos meus dois sites: http://www.steinhardts.com/ e www.geocities.com/ishluz.
Por natureza, gosto de seguir as regras e a disciplina. Talvez exagere, o que é também um grande defeito.

Mas, por favor, que esses visitantes/leitores não me entendam mal.
O facto de haver tantos leitores que me honram diariamente com as suas visitas e com os seus comentários é de certo muito lisonjeiro. Muitos desses comentários e perguntas chegam-me por email.
Tenho muito prazer em que me escrevam, e que me façam todas as perguntas que quiserem sobre judaísmo. Nem sempre saberei responder. Nem sempre as minhas respostas serão as únicas possíveis. E muitas vezes serão apenas uma opinião pessoal.
Mas tenho que pôr o processo numa ordem aceitável e seguir uma disciplina.

Quando as vossas perguntas forem de carácter pessoal, por favor escrevam para o meu email inacio@steinhardts.com e eu, dentro das minhas possibilidades, responderei pessoalmente.
Quando digam respeito a "palavras" portuguesas, mesmo relacionadas com o judaísmo, tentarei escrever um blog para cada uma delas, seguindo uma agenda razoável.
Quando sejam perguntas não relacionadas com este blog, mas de interesse geral, e eu saiba responder, procurarei escrever sobre o tema no site dos meus escritos .

Entrando na ordem do dia, vamos agora para as perguntas recentes sobre a grafia de termos judaicos em português.
Todos sabemos que, ao transcrever palavras que originalmente se escrevem com caracteres diferentes dos nossos, não há normas fixas. E as confusões são sempre possíveis.
A minha teoria é que se deve utilizar sempre o sistema ortográfico português. Mas, muitas vezes, há grafias estrangeiras que entraram no uso comum em português, e torna-se ridículo e obsoleto, escrever de outra forma, correndo o risco de não se ser compreendido.
O mesmo sucede na imprensa com os muitos nomes hebraicos e árabes que aparecem diariamente nos noticiários.

Tenho seguido uma luta quixotesca para que se escreva "cacher" e não "kosher", que é uma cópia do anglo-americano. Mas sem grandes resultados.
A letra "k" já não existe em português. Nos processos da inquisição escrevia-se "Quipur", mas hoje toda a gente escreve "Kipur". Quem sou eu para impor um regresso ao passado?
Um dos principais problemas é a transcrição de fonemas que não existem na língua portuguesa, como por exemplo o "H gutural", que se pronuncia em hebraico, mais ou menos como o "j" em espanhol.
Houve quem resolvesse o problema escrevendo "kh", como em Khaifa por Haifa. Mas isso caiu em desuso, tal como o uso geral do "k"..
Por isso os espanhóis não têm problema em escrever "Janucah", e por isso os judeus sefarditas de nome "Haim" se chamam normalmente em "português" Jaime, por influência do espanhol.
Em português antigo, o problema foi rodeado, substituindo o "h gutural" por "f", tanto para a letra hebraica "het", como para o "Khaf". Nos documentos das Chancelarias dos nossos reis, Haim é transcrito como "Faym", Mordehai como "Mordofay", etc.
O mesmo sucedeu em relação ao árabe. Alfama é o bairro de Lisboa onde existem umas termas de água quente, "Hama" em árabe, ou Al-hama = Alfama. Aqui em Israel existem umas termas que têm precisamente esse nome "Alh'amá"
"Al-hayat" deu alfaiate, "Al-buhera" deu Albufeira, "Harun" é a cidade de Faro, etc.

Os judeus ashkenazis que chegaram a Portugal a partir da segunda década do século XX, traziam a tradição de transcrever o "h gutural" como em alemão, por "ch".
Por isso começaram por escrever "Chanukah", "Hechawer" (a grafia original da associação que hoje se escreve Hehaver), Chaim, por Haim, etc.
O risco de se escrever em português só com o "h", é as pessoas lerem "eaver", "aim".
Voltando ao português antigo, quando no hebraico se escrevia a letra "he" (h aspirado) muitas vezes era omisso: Coen, por Cohen. Mas também aparece erradamente "Cofen".
A grafia com "Ch" ainda se usa no Brasil, resultando em pronúncias erradas, o que é natural, pois o "ch" em português lê-se "x".
E ultimamente vejo que o mesmo está a suceder na Comunidade Israelita de Lisboa, talvez por influência da imigração brasileira. Considero isso um erro, mas também não sei qual seja a melhor solução.
O vinho "Terras de Belmonte", produzido na Covilhã, é evidentemente "cacher" e não "kosher", mas para ser vendido na América, tiveram que se acomodar à terminologia dos clientes.

Outro problema é a transcrição das palavras terminadas em "á", que em hebraico se escrevem com um "h" final. Daí a transcrição "Hanucah", "Menorah". Eu escreveria "Hanucá", "Menorá".
Mas isso também tem as suas ratoeiras.
Hoje mesmo, respondi a uma amiga portuguesa que se me dirigiu, por piada, por "haver" (amigo, Hehaver é "O Amigo"). Mas, na resposta, escrevi no feminino "haverá" e reparei logo que se ia confundir com o verbo haver, pelo que rectifiquei para "haverah", contra o princípio que invoquei acima.

Concordam comigo que é difícil ser prior desta freguesia?

E depois, acresce que na língua portuguesa, como nas outras, não faltaram os acordos ortográficos, que ora modificam ora regressam ao antigo
Se eu tiver tempo, hei-de transcrever aqui um curioso monólogo do Vasco Santana sobre esse tema. Muitos de vocês já não se lembrarão deste actor.

Ficamos pois entendidos que, se disserem Menorá e H'anucá (o nome da festa) e H'anuquiá (o candelabro que usa nessa festa), pronunciando à portuguesa o que escrevi, estão a dizer bem.

Não proponho que se escreva sempre o "h gutural" pela forma que aqui usei "h'", por que o apóstrofo é necessário para as consoantes mudas. Mas isso é outra história.

À pergunta sobre a forma como os cripto-judeus portugueses no século XX escreviam H'anucá, a resposta é que eles não tinham conhecimento dessa festa. Já estava esquecida.
E sobre a comparação de Belmonte com Argozelo. Em Argozelo encontrei um bairro inteiro de "judeus". Mas não encontrei nenhum/a que ainda se lembrasse das orações. Eu estive lá pela primeira vez nos anos 80 e não nos anos 60, em que fui só a Belmonte.
Encontrei-os sim em Rebordelo e em Vilarinho dos Galegos, onde a tradição oral era em tudo semelhante à de Belmonte, embora não houvesse comunicação entre uns e outros.

sábado, outubro 07, 2006

Borda d' Água

Obrigado aos muitos visitantes que publicaram comentários, ou me escreveram directamente, esclarecendo-me que o Borda d' Água continua a exercer a sua função social.
E também aos que me lembraram a existência do outro almanaque, de funções idênticas, o"Seringador", que optou o tom jocoso, e concorre no vasto mercado que parece existir.
Segundo me informam, o Borda d' Água para 2006 atingiu uma venda de mais 350 mil exemplares. E ainda há quem diga que a indústria da edição de livros em Portugal está muito por baixo...

Não, não me mandem nenhum exemplar. Agradeço aos amigos visitantes que se ofereceram gentilmente para isso, mas a verdade é que tenho, nos meus arquivos um exemplar de cada um, Borda d' Água e Seringador, e já me chega.

Assim como assim, não me seriam muito úteis aqui. Comprei-os, como complemento das minhas investigações sobre os usos e costumes dos cripto-judeus portugueses contemporâneos. Como eles não tinham calendários judaicos, que, já disse, são lunares, começando os meses na lua nova, a única forma de determinarem as datas das principais festas religiosas era contar o número de dias a partir da lua nova, e então sabiam quando era o dia 14 de Nissan ou o 10 de Tishri.
Quando eu os conheci, em 1963, eles já não precisavam de observar a lua. Sabiam a data da lua nova, com bastante antecedência, através do que eles chamavam os "reportórios", e está certo, pois também esse nome é usado para designar os almanaques.
A propósito, "al-manak" significa em árabe simplesmente "calendário".

A primeira publicação impressa desse género, que apareceu em Portugal com a intenção de ser regular foi em 1811, na Imprensa Régia de Lisboa, e trazia um nome muito comprido, que começava por "Lunário..." E era isso mesmo, como é ainda hoje, um livrinho para se saber das luas, que tanto influenciam a agricultura.
Mas havia séculos que certos astrólogos compunham umas folhinhas com as principais informações e iam pendura-las nas margens dos rios navegáveis, para que os barqueiros, ao passarem por ali, recebessem informações frescas.
É isso que significa o "velho da cartola", na capa do almanaque. É um astrólogo que leva as folhinhas de baixo do braço, para as ir pendurar à "Borda d' Água".
A segunda publicação do Lunário já trazia o subtítulo "Borda d' Água".
A actual publicação do "Verdadeiro Borda d' Água" (pois imitações já houve muitas, como para os deliciosos "Verdadeiros Pasteis de Nata de Belém" e outras mais verdades, ou "verdadades" que por aí circulam) já ultrapassou os 140 anos e continua a prestar bons serviços a muita gente.
Sem desprimor para o "Seringador", jocoso por intenção, que surgiu mais ou menos pela altura desta segunda versão, para "seringar o pobre, o rico e o lavrador".

Almanaques, folhinhas, reportórios e Borda d' Águas não foram invenção portuguesa, existiram e existem em muitos países. Personagens famosos, como Benjamin Franklin, estiveram ligados a alguns, que ainda hoje são citados.

Mas eu não vos vou "seringar" mais com isto. Ficamos por aqui.

quinta-feira, outubro 05, 2006

Os nomes dos meses

Vejam lá como as coisas são.
Continuo com a minha pasta de Etimologia cheia de papelinhos, que estou ansioso por deitar fora, e, em lugar de me concentrar nessa tarefa, há sempre outro tema que teima comigo, para eu o tratar aqui.
Há pouco tempo tratei do tema CALENDÁRIO, e o pouco que tenho para acrescentar é ciência que todos, ou quase todos, já possuem. E tratar do tema em extensão seria abusar do âmbito de um simples blog.
Hoje, dia em que estou escrevendo, é o dia da Implantação da República, em Portugal, 5 de Outubro, o décimo mês do nosso calendário. Lembrei-me de que, se a história das palavras fosse simples, o nome deste mês deveria se der Dezembro e não Outubro.
Todos sabemos e já aqui escrevi, que a origem dos nomes dos quatro últimos meses do ano deriva dos números SETE, OITO, NOVE e DEZ, o que não corresponde à realidade, desde que Março deixou de ser o primeiro mês, para ser o terceiro.

Tudo isto começou com o antigo calendário romano, criado, segundo as lendas, por Rómulo, cerca de 7 ou 8 séculos antes da Era de Cristo. A intenção era substituir os antigos calendários lunares, uma vez que os meses lunares faziam variar as datas das estações e das festividades religiosas, mesmo as pagãs, criando uma confusão em que ninguém se entendia.
Esse primeiro calendário romano tinha 10 meses, de 30 ou 31 dias, deixando fora do cômputo dois meses de inverno.
Os dias dos meses não eram numerados, como são hoje, mas sim contados em relação às calendas, nonas e idos, como pontos de referência. As calendas, já vimos que eram o primeiro dia de cada mês. As nonas eram o nono dia antes dos idos (divisão), e estes por sua vez, eram os dias da lua cheia, em que o mês se dividia em duas partes.
Para indicar uma determinada data, dizia-se "três dias antes das nonas de Setembro" ou "no quarto dia antes das calendas de Dezembro", etc. Parecer-nos-á hoje demasiado complicado, mas para os romanos, na altura, foi uma grande invenção para a contagem do tempo.
O ano começava em Março, que deve o seu nome ao deus Marte, Abril, Aprile, para cujo nome há duas explicações etimológicas, de Afrodite, o outro nome de Vénus, ou de aprire, o mês em que os botões das flores se abriam; Maio, do nome da deusa Maia, Junho, do deus Juno; Julho, que se chamou quintilis, por ser o quinto, foi baptizado depois em honra do imperador Júlio César; Agosto, chamou-se sextilis, por ser o sexto, e depois passou a honrar o imperador César Augusto.
Os restantes quatro, já vimos.
Faltavam dois meses para completar o ciclo solar. Foram feitas várias experiências para intercalar esses dois meses, as quais não vou pormenorizar.
Bastar-nos-á registar que acabaram por ficar após o décimo mês, Dezembro, e receberam os nomes de Janeiro (Januarius, do deus Janus) e Fevereiro (Februarius, de Februa, a "purificação", que se fazia no dia 15 desse mês).
Este mês de Fevereiro tinha apenas 28 dias, para completar e não exceder, o ano solar de 365 ¼ dias.
Para isso foi decidido acrescentar um dia, de quatro em quatro anos. Foi escolhido o mês de Fevereiro, por ser o mais curto de todos eles.
Esse dia adicional seria uma repetição do dia 24 de Fevereiro, que nesse tempo se chamava "o sexto dia antes das calendas de Março". Portanto haveria dois "sextos dias antes das calendas de Março" e daí que em cada quatro anos havia um ano com duas vezes "sexto", ou seja "bissexto".
As ideias de simplificação e aperfeiçoamento vão surgindo a pouco e pouco.
Quando da numeração dos dias, que hoje seguimos universalmente, o dia acrescentado passou para o fim de Fevereiro, que em cada ano "bissexto", passou a ter 29 dias.
Por isso o meu colega da primeira classe, Piloto salvo erro se chamava, dizia que a "madrinha" dele tinha apenas 15 anos, por só fazer anos nos anos bissextos. Vantagem de nascer em 29 de Fevereiro.
Resta acrescentar que 15 de Março era o dia da posse dos novos cônsules. Por isso o ano começava em Março.
Quando esse acto público foi transferido para as calendas de Janeiro, passou este a ser o primeiro mês do ano e Março o terceiro.
Calendas de Janeiro é o dia que hoje designamos por 1 de Janeiro, que o "Borda de Água" (já há muita gente que não conhece o "Borda de Água", ou ainda se vende por ai?) o popular almanaque dos agricultores e não só, designa como "Dia da Circuncisão do Senhor". Isto porque, segundo a tradição, Jesus nasceu em 25 de Dezembro, e os varões judeus são circuncidados no oitavo dia depois do seu nascimento.

domingo, outubro 01, 2006

Frango à Cafreal

Lembrar-me de um tema gastronómico precisamente na véspera de um dia de jejum, talvez seja pecado. Tenho que verificar isso, mas já agora depois de publicar o blog.

Dia de jejum para muita gente, pois para os judeus amanhã é o dia de Kipur, durante o qual não se come nem se bebe, desde o pôr-do-sol de hoje até ao nascer das estrelas de amanhã; e para os muçulmanos é o mês do Ramadão, durante o qual só podem comer à noite.

Em Israel é um dia muito carregado de emoções.
Porque é um Dia de Expiação dos pecados, dia de Perdão, dia em que, segundo a tradição, são firmadas as sentenças sobre o que vai ser a vida de cada um, no ano que começou há dez dias. Os mais religiosos passam o dia de jejum inteiro na sinagoga em orações e penitências. Os menos religiosos, na sua maioria, fazem duas visitas furtivas à sinagoga, hoje à noite, e amanhã, à hora da última oração, quando o sol se estiver a pôr sobre o Mediterrâneo. Provavelmente eles lá pensarão para consigo que, mesmo que a tradição não corresponda a nada de sério, "vá lá a gente saber" E não se perde nada em ir à sinagoga uma vez por ano...

Tenso também porque ainda não esqueceu o trauma do dia de Kipur de 1973, em que os israelitas foram surpreendidos pelo ataque simultâneo de todos os países fronteiriços. E os soldados foram chamados directamente das sinagogas para a frente de batalha. Morreram nessa guerra milhares de soldados, cujas famílias estão a visitar esta manhã as suas campas.

E a tudo isto há que somar o facto dos Serviços de Informação militares avisarem de que têm grande número de alertas sobre atentados terroristas planeados para hoje.

Qual a ligação etimológica com o frango à Cafreal? Já vamos ver.

Comecemos por lembrar que as línguas semíticas (hebraico, aramaico, árabe, fenício, ugarítico, etc.) são de flexão interna. Isto é, as raízes são constituídas apenas por consoantes, normalmente três, e os derivados modificam também as vogais no interior dessas raízes.

Uma dessas raízes, que nos pode servir de exemplo é CFR ou CPR, porque o F e o P são a mesma letra nas línguas semíticas.
Na sua forma mais simples o significado desta raiz era "cobrir, tapar" e por extensão "declarar que o que foi dito não é verdade".
É uma raiz que entra na composição de muitas palavras em todas essas línguas, e em que, por vezes, é difícil distinguir a origem semântica.
KIPUR - ou QUIPUR como se escrevia antigamente em português - é uma dessas palavras. O "C" está escondido, porque, em português, antes do "i" ler-se-ia "ss". Teve que ser substituído pelo "K" (imitação de outras línguas, porque não existe em português") ou pelo "Qu".

Kipur é, neste caso, um sinónimo de "expiação, perdão". Uma das formas de perdoar é "tapar" o pecado, "declarar que ele já não é verdade, já não existe".
"Cofêr" é a posição jurídica de um acusado, no tribunal, que nega ter cometido o crime de que é acusado.
"Cofêr" é também o indivíduo que nega a existência de Deus ou, em relação a uma determinada religião, nega os princípios da mesma.

Ora "cafr" era também o nome que os mouros da costa sudeste da África davam aos indígenas idólatras, que não aceitavam a religião muçulmana que eles seguiam.
Os portugueses, quando lá chegaram, adoptaram a mesma terminologia. Os pretos indígenas são mencionados na nossa literatura da época das descobertas e do povoamento da África austral pela forma aportuguesada "cafres". E a região por eles habitada por "Cafraria".

O mundo dá muitas voltas, e assim como hoje os fundamentalistas muçulmanos apodam de "cafres" todos os seres humanos que não seguem a sua religião (agora está mais na moda falar de "cruzados" e de "sionistas"), também em Portugal se chamou de "cafre" a quem não era cristão.

Num documento que Alexandre Herculano achou na Biblioteca da Ajuda e publicou nas suas obras, vêm referidos "os sete cafres contumazes", rabinos judeus que D. Manuel deixou encerrados nos Estaos, depois da conversão forçada de 1497, até que "se convertessem ao Cristianismo de sua própria vontade" para servir de exemplo aos forçados. Eles preferiram morrer "santificando o Nome de Deus".

E já que falámos de Moçambique é curioso lembrar que em Nampula existe agora uma nova universidade com o nome de Mussa Bin Bique.
Mussa era um rei mouro da ilha de Moçambique, que também aparece com a grafia Mussa N'bik. Foi da sua Ilha de Mussa N'bik, que passou o nome para toda a província colonial portuguesa, e para a actual República de Moçambique.

Voltando pois ao dia de Kipur, e à Cafraria, temos que tudo quanto diga respeito a esta se diga CAFREAL Como a receita do frango, que serviu de pretexto para o meu blogue de hoje.

Para quem não faz hoje jejum, aqui vai como bónus pela paciência de me ter lido até aqui, uma ligação para a receita do Frango à Cafreal

quarta-feira, setembro 27, 2006

Chá

Uma coisinha mais leve para hoje, se não se importam: uma conversa para a hora do chá
Linguisticamente, em relação a esta bebida, o mundo divide-se aparentemente em duas partes: as línguas em que o nome da planta tem a forma chá, ou semelhante, e aqueles em que tem a forma té, tea, ou semelhantes. E há as variantes mistas: "Tchai", "Tai"; em russo chaleira diz-se "Tchainik".
O nome científico é Thea sinensis ou Camellia theifera.
Entre as primeiras conheço apenas o português, o japonês, o russo e o árabe, mas pode ser que haja mais, que não sejam do meu conhecimento.
A verdade é que ambas as formas têm a mesma origem, na língua chinesa, o mesmo símbolo, cuja pronúncia varia apenas de dialecto para dialecto.
As muitas histórias e lendas sobre a "invenção do chá" dariam para escrever um livro,
A mais corrente – e também verosímil – é que o imperador chinês Chen Nung (cerca de 2740 a.C.) ordenou à população que, por uma questão de higiene, fervesse sempre a água, antes de a beber.
Quando um dia o próprio imperador cumpria essa determinação, debaixo de um arbusto selvagem, a brisa arrastou algumas folhas do mesmo, que foram cair dentro da água fervente. O imperador provou a água, gostou, e assim nasceu o Culto do Chá,
Foram os japoneses que criaram a encantadora e mística cerimónia da preparação do chá, a que tive o gosto de assistir, e provar, sem nunca ter ido ao império do Sol Nascente.
Foi na Galileia, em casa de uma senhora japonesa, casada com um israelita. Para que ela não tivesse demasiadas saudades da sua terra natal, o marido plantou um jardim em redor da casa, na mais pura tradição japonesa, com plantas aquáticas, nos carreiros de acesso. Também dentro da casa predomina o ambiente japonês, com a cerimónia diária do chá, de que participam os convidados. Além disso a senhora dedica-se a costurar por encomenda riquíssimos kimonos.

Tudo indica que foram os portugueses que trouxeram para a Europa a planta do chá e o seu uso, pois já na segunda metade do século XVI se faz referência ao chá em documentos escritos na nossa língua.
O "five o'clock tea" é hoje um símbolo indispensável da cultura social britânica.
E foi uma portuguesa, D. Catarina de Bragança, filha de D. João IV e de Dona Luísa de Gusmão, que introduziu o chá na Inglaterra, quando casou com Carlos II, soberano daquele país.
E não só o chá, como o uso do garfo à mesa, a marmelada, os vinhos do Porto e da Madeira… e as tangerinas, outro fruto da China. Mas das tangerinas e das laranjas falarei noutra ocasião.
Lembro-me de ter lido uma vez, há muitos anos, quando era ainda mais jovem do que hoje, que Dona Catarina, quando chegou à corte britânica, entregou aos criados um pacotinho de chá, que trouxera consigo e pediu que lhe preparassem um chá. Eles nunca tinham visto tal coisa e perguntaram como se preparava aquilo. Dona Catarina explicou que era muito simples: "Ferve-se água e deita-se a água a ferver em cima das folhas."
Daí a bocado trouxeram-lhe um prato com as folhas molhadas e quentes. A água tinham-na deitado fora… Quem não sabe…

Nessa altura também se chamou "chá" em Inglaterra. Mas cedo o comércio do chá foi desenvolvido pelos ingleses e pelos holandeses da "Companhia das Índias" e a pronúncia malaia foi absorvida pela língua inglesa, começando por se pronunciar "tai" e só depois "ti" (tea).

Actualmente, os "classificadores de chá encartados", no porto de Londres, usam o mesmo sistema. De cada remessa de folhas que chegam à alfândega, eles tiram uma amostra, deitam-lhes água fervente de uma chaleira, que trazem consigo, e, depois de provar a bebida, decidem qual a sua classificação comercial no mercado.

Há também uma receita de bolo, "Maids of Honour", a que em Inglaterra se atribuem hoje as mais diversas origens, e alguns estabelecimentos se assumem de possuir a única receita original, mas que, segundo consta, foi introduzido em Inglaterra pelas duas damas de honor de Dona Catarina de Bragança: as condessas de Penalva e de Pontével. Os mesmos bolos chamavam-se em Portugal, não sei se ainda se chamam, "londrinos" ou "pasteis de Londres".

Outro aspecto que se relaciona com Dona Catarina de Bragança é o bairro Queens, em Nova Iorque.
Carlos II de Inglaterra, ao receber as terras da antiga New Amsterdam, deu à cidade o nome de New York, em honra de seu irmão o Duque de York, e aos dois principais bairros da cidade os de Kings e Queens, em honra dele próprio e de sua mulher, a rainha Dona Catarina.
Li há tempos uma história, que talvez os nossos amigos dos Estados Unidos me possam aclarar.
Ed Koch, quando foi Mayor de Nova Iorque, "revelou" ao presidente da Câmara de Lisboa (qual?) o que acima referi.
O chefe do Município português decidiu então promover a colocação em Queens de uma estátua da princesa portuguesa, cujo custo seria suportado pelo governo português e por donativos particulares.
A estátua chegou a ser encomendada ao escultor Audrey Flack, e uma réplica da mesma foi colocada em Lisboa, na Expo.
Mas, nos Estados Unidos, levantou-se uma polémica entre dois grupos rivais o "Friends of Queen Catherine" e o "Friends Against Queen Catherine". Estes opunham-se à colocação da estátua no "Bairro da Rainha", por ter sido uma portuguesa, um país que se dedicou durante muitos anos à escravatura.
Parece-me um argumento um pouco hipócrita. Qual foi o país colonialista que se não dedicou à escravatura?
Teria sido colocada a estátua em Queens?
As palavras são como as cerejas... e a história delas também.
Desta vez vou ter por certo muitos comentários para me responderem às muitas perguntas que aqui deixo em aberto.
Estou sempre a aprender!

terça-feira, setembro 26, 2006

flocos ao pequeno-almoço

Hoje apeteceu-me conversar convosco sobre uma das muitas invenções, que nasceram de erros e da vontade de os remediar.
Os cereais do pequeno-almoço, em flocos, que hoje se vendem num sem número de variedades, que só servem para dificultar a escolha, são uma dessas invenções.
Os flocos "prontos para comer" são normalmente de milho, ou "corn-flakes", um nome que normalmente aparece associado com a marca "Kellogg's" (passe a propaganda).
"Kellogg's of Battle Creek" é o nome original da empresa. E aqui cabe um pequeno parêntese para explicar este nome.
Em 1825 dois agrimensores travaram uma pequena batalha com dois índios do Michigan, junto de um pequeno riacho. Aparentemente ganharam os funcionários brancos, e o lugar ficou a ser conhecido por "Battle Creek", ou "riacho da batalha".
Não foi, porém, por essa batalha, que a cidade, que ali se formou, ficou conhecida na história.
Em meados do século XIX, a Igreja Adventista da América, estabeleceu ali a sua sede e o seu Centro de Publicações.
Um dos princípios daquela comunidade religiosa era a alimentação racional e vegetariana. Por isso, criaram, no mesmo complexo, uma espécie de sanatório, onde os pacientes recebiam tratamento baseado na nutrição natural e na medicina preventiva.
Dirigia esse sanatório o Dr. John Harvey Kellogg, já então conferencista famoso em matéria de nutrição. Com ele trabalhava um seu irmão, chamado Will Keith Kellogg. Ambos dirigiam um projecto de selecção de alimentos nutritivos para o pequeno-almoço.
Um dia, em 1894, os irmãos prepararam uma massa de farinha de trigo e, tendo que ir atender a uma emergência, deixaram-na ficar crua e destapada durante muito tempo. Quando foram por ela, tiveram a triste surpresa de ver que a massa tinha secado e estava intragável.
Como tinham uma máquina para esticar a massa e torna-la muito fina, pensaram salvar a situação, passando a massa, que se estragara, entre os dois rolos metálicos aquecidos, esperando obter uma massa semelhante à que os pasteleiros usam para os bolos "mil-folhas", muito fina, que pudessem servir aos pacientes.
O resultado, porém, foi inesperado: as folhas de massa estalaram entre os rolos metálicos, e o que saiu foram flocos. Desilusão.
O orçamento da casa era muito frugal, deitar fora o trabalho era um prejuízo que queriam evitar e os irmãos Kelloggs decidiram, mesmo assim, aproveitar esses flocos, e servi-los tostados aos doentes.
Os pacientes simplesmente adoraram-nos e pediram para lhes servirem mais vezes aqueles flocos ao pequeno-almoço.
Pouco tempo depois Will Keith Kellogg registou a patente e deixou o trabalho no sanatório, para fundar ali mesmo, a "Kellogg's of Battle Creek", uma fábrica que fornecia cereais de pequeno-almoço, em flocos torrados, para toda a América.
Hoje, como sabem, a Kellogg's tem filiais e fábricas em quase o mundo inteiro.

Terminada a validade da patente, muitas outras empresas começaram a fabricar cereais de pequeno-almoço, baseados mais ou menos no mesmo princípio. Como se pode ver nos supermercados.
Bom proveito.

A história dos flocos de aveia da "Quaker Oats" – que nada tem que ver, a não ser o nome, com a organização religiosa dos Quakers – ficará para uma próxima oportunidade, se ainda estiverem interessados.
Uma nota final, para todos os simpáticos visitantes, que têm escrito aqui comentários e me enviam dezenas de emails. Peço-lhes que continuem a faze-lo, pois me permitem aumentar os meus parcos conhecimentos da matéria. Faço o possível por responder, ainda que sucintamente às interessantes perguntas que me fazem. Mas infelizmente o tempo de que disponho é pouco, pois tenho que trabalhar também em assuntos mais úteis. Não fiquem aborrecidos comigo se as respostas levaram mais tempo do que seria delicado da minha parte.
Manuel Moura, dê-me o seu email, para lhe poder responder directamente. Já o fiz, mas voltou.

segunda-feira, setembro 25, 2006

Eleições

Bom. Finalmente, vamos conversar hoje sobre a história de alguns termos relacionados com política e eleições.
Comecemos já com POLÍTICA. Política chegou-nos do grego antigo politéia, que foi o título original dado por Platão à sua obra famosa, que viria a ser traduzida para nós como "A República".
Politéia (que derivou para o latim como "polítia") era tudo quanto se relacionava com a "polis", a cidade-estado. Politês era o cidadão. Politikós, o que se relacionava com a administração da cidade e do cidadão,
A nossa Polícia, o órgão da autoridade, cuja função é a de repressão ao crime e manutenção da ordem pública, tem exactamente a mesma origem.
Eleição, do latim electione é simplesmente o acto de escolher. Também em Roma, quando o seu regime foi democrático, se realizavam eleições. É um verbo composto de "legere", escolher e do prefixo "ex", fora, o que deu èligere, escolher, tirar para fora um de entre dois ou mais candidatos.
Estes, por sua vez, vestiam uma toga branca, sinal de pureza de intenções, e que também os distinguia para que os eleitores os conhecessem.
"Candidum", em latim, significava simplesmente "ser branco". Por extensão, também brilhar. Com alguma imaginação podemos notar que o mesmo verbo deu origem ao adjectivo e nome próprio "Cândido" (como o herói de Voltaire), a nossa "candeia" que vai à frente para alumiar duas vezes. E até aquela aborrecida doença causada pelo fungo "Cândida" com suas manchas brancas. Os homens da toga branca eram os "candidatos".
Portanto, temos os nossos "candidatos", vestidos de togas brancas, a fazer a sua campanha eleitoral, de reunião em reunião, de círculo em círculo, na sua ambição de conquistar os nossos votos.
O prefixo "ambi-" (dois) conhecemos nós de "ambos", de "ambivalente", etc.. Juntemos-lhe o verbo "ire" (isso mesmo "ir") e temos "ambire", ir de um lado para o outro. Na sua declinação nominal "ambitio" adquiriu o sentido de "andar de um lado para o outro a solicitar votos". A ambição do candidato.

Uma importante parte da campanha eleitoral consiste em aparecer em lugares públicos, mercados, convenções, apertar as mãos dos eleitores, dizer-lhes uma palavra simpática, para atrair simpatia e votos.
E é importante conhecer cada um, ou pelo menos fingir que se conhece, dirigindo-se a cada um pelo seu nome. Mas quem é que tem memória para decorar os nomes de todos os cidadãos de Roma?
Para isso eram escolhidos escravos, especialmente treinados para aprenderem e se lembrarem do maior número de nomes. Eles caminhavam discretamente ao lado dos candidatos, e sussurravam-lhes ao ouvido o nome da pessoa por quem passavam. Assim evitavam o embaraço do esquecimento ao apertar-lhe a mão.
A esses escravos chamavam "nomenclator", o que diz os nomes.
Daí derivaram as nossas "nomenclaturas".

Acabam aqui, por hoje, as ambições políticas deste pacato "politês".