Quando criei este blog, fi-lo claramente na intenção de "despejar o meu saco", ou dossier, se quiserem, onde jaz a minha colecção de apontamentos sobre a vida das palavras, tema que, como já escrevi, me apaixona.
Não tinha, nem tenho, a intenção de que ele se torne num blog sobre judaísmo.
Sobre esse tema, entre outros, escrevo nos meus dois sites:
http://www.steinhardts.com/ e
www.geocities.com/ishluz.
Por natureza, gosto de seguir as regras e a disciplina. Talvez exagere, o que é também um grande defeito.
Mas, por favor, que esses visitantes/leitores não me entendam mal.
O facto de haver tantos leitores que me honram diariamente com as suas visitas e com os seus comentários é de certo muito lisonjeiro. Muitos desses comentários e perguntas chegam-me por email.
Tenho muito prazer em que me escrevam, e que me façam todas as perguntas que quiserem sobre judaísmo. Nem sempre saberei responder. Nem sempre as minhas respostas serão as únicas possíveis. E muitas vezes serão apenas uma opinião pessoal.
Mas tenho que pôr o processo numa ordem aceitável e seguir uma disciplina.
Quando as vossas perguntas forem de carácter pessoal, por favor escrevam para o meu email
inacio@steinhardts.com e eu, dentro das minhas possibilidades, responderei pessoalmente.
Quando digam respeito a "palavras" portuguesas, mesmo relacionadas com o judaísmo, tentarei escrever um blog para cada uma delas, seguindo uma agenda razoável.
Quando sejam perguntas não relacionadas com este blog, mas de interesse geral, e eu saiba responder, procurarei escrever sobre o tema no site dos
meus escritos .
Entrando na
ordem do dia, vamos agora para as perguntas recentes sobre a grafia de termos judaicos em português.
Todos sabemos que, ao transcrever palavras que originalmente se escrevem com caracteres diferentes dos nossos, não há normas fixas. E as confusões são sempre possíveis.
A minha teoria é que se deve utilizar sempre o sistema ortográfico português. Mas, muitas vezes, há grafias estrangeiras que entraram no uso comum em português, e torna-se ridículo e obsoleto, escrever de outra forma, correndo o risco de não se ser compreendido.
O mesmo sucede na imprensa com os muitos nomes hebraicos e árabes que aparecem diariamente nos noticiários.
Tenho seguido uma luta quixotesca para que se escreva "cacher" e não "kosher", que é uma cópia do anglo-americano. Mas sem grandes resultados.
A letra "k" já não existe em português. Nos processos da inquisição escrevia-se "Quipur", mas hoje toda a gente escreve "Kipur". Quem sou eu para impor um regresso ao passado?
Um dos principais problemas é a transcrição de fonemas que não existem na língua portuguesa, como por exemplo o "H gutural", que se pronuncia em hebraico, mais ou menos como o "j" em espanhol.
Houve quem resolvesse o problema escrevendo "kh", como em Khaifa por Haifa. Mas isso caiu em desuso, tal como o uso geral do "k"..
Por isso os espanhóis não têm problema em escrever "Janucah", e por isso os judeus sefarditas de nome "Haim" se chamam normalmente em "português" Jaime, por influência do espanhol.
Em português antigo, o problema foi rodeado, substituindo o "h gutural" por "f", tanto para a letra hebraica "het", como para o "Khaf". Nos documentos das Chancelarias dos nossos reis, Haim é transcrito como "Faym", Mordehai como "Mordofay", etc.
O mesmo sucedeu em relação ao árabe. Alfama é o bairro de Lisboa onde existem umas termas de água quente, "Hama" em árabe, ou Al-hama = Alfama. Aqui em Israel existem umas termas que têm precisamente esse nome "Alh'amá"
"Al-hayat" deu alfaiate, "Al-buhera" deu Albufeira, "Harun" é a cidade de Faro, etc.
Os judeus ashkenazis que chegaram a Portugal a partir da segunda década do século XX, traziam a tradição de transcrever o "h gutural" como em alemão, por "ch".
Por isso começaram por escrever "Chanukah", "Hechawer" (a grafia original da associação que hoje se escreve Hehaver), Chaim, por Haim, etc.
O risco de se escrever em português só com o "h", é as pessoas lerem "eaver", "aim".
Voltando ao português antigo, quando no hebraico se escrevia a letra "he" (h aspirado) muitas vezes era omisso: Coen, por Cohen. Mas também aparece erradamente "Cofen".
A grafia com "Ch" ainda se usa no Brasil, resultando em pronúncias erradas, o que é natural, pois o "ch" em português lê-se "x".
E ultimamente vejo que o mesmo está a suceder na Comunidade Israelita de Lisboa, talvez por influência da imigração brasileira. Considero isso um erro, mas também não sei qual seja a melhor solução.
O vinho "Terras de Belmonte", produzido na Covilhã, é evidentemente "cacher" e não "kosher", mas para ser vendido na América, tiveram que se acomodar à terminologia dos clientes.
Outro problema é a transcrição das palavras terminadas em "á", que em hebraico se escrevem com um "h" final. Daí a transcrição "Hanucah", "Menorah". Eu escreveria "Hanucá", "Menorá".
Mas isso também tem as suas ratoeiras.
Hoje mesmo, respondi a uma amiga portuguesa que se me dirigiu, por piada, por "haver" (amigo, Hehaver é "O Amigo"). Mas, na resposta, escrevi no feminino "haverá" e reparei logo que se ia confundir com o verbo haver, pelo que rectifiquei para "haverah", contra o princípio que invoquei acima.
Concordam comigo que é difícil ser prior desta freguesia?
E depois, acresce que na língua portuguesa, como nas outras, não faltaram os acordos ortográficos, que ora modificam ora regressam ao antigo
Se eu tiver tempo, hei-de transcrever aqui um curioso monólogo do Vasco Santana sobre esse tema. Muitos de vocês já não se lembrarão deste actor.
Ficamos pois entendidos que, se disserem Menorá e H'anucá (o nome da festa) e H'anuquiá (o candelabro que usa nessa festa), pronunciando à portuguesa o que escrevi, estão a dizer bem.
Não proponho que se escreva sempre o "h gutural" pela forma que aqui usei "h'", por que o apóstrofo é necessário para as consoantes mudas. Mas isso é outra história.
À pergunta sobre a forma como os cripto-judeus portugueses no século XX escreviam H'anucá, a resposta é que eles não tinham conhecimento dessa festa. Já estava esquecida.
E sobre a comparação de Belmonte com Argozelo. Em Argozelo encontrei um bairro inteiro de "judeus". Mas não encontrei nenhum/a que ainda se lembrasse das orações. Eu estive lá pela primeira vez nos anos 80 e não nos anos 60, em que fui só a Belmonte.
Encontrei-os sim em Rebordelo e em Vilarinho dos Galegos, onde a tradição oral era em tudo semelhante à de Belmonte, embora não houvesse comunicação entre uns e outros.